Você sabia que a palavra “poesia” vem do grego antigo “poiesis”, que também significa “trabalho”?
Muita gente já refletiu sobre as razões que levaram os fundadores da civilização ocidental a amalgamarem em uma só palavra dois conceitos aparentemente tão diversos. E eu agora me pergunto: o que levou a própria civilização ocidental, no estágio em que a vivemos hoje, a apartar os conceitos de poesia e trabalho em pólos praticamente opostos?
A equação poesia = trabalho é simples e fácil de entender. O relâmpago poético depende do suor do poeta para ser comunicado. Poema é obra. E o chavão “90% de transpiração e 10% de inspiração” é perfeitamente compreensível para qualquer mortal. Os problemas começam quando invertemos o sentido da equação e pensamos na idéia de que trabalho = poesia. Para o imaginário pedestre, poeta é justamente aquele que vive de nuvens, aquele que, na definição oficial do Houaiss, é dado a devaneios.
Mesmo que enganada no particular, já que o poeta é de fato um trabalhador dos mais aguerridos a seu ofício, a sabedoria pública tem lá seu fundamento. No mundo de hoje, poesia e trabalho são vinho e petróleo. A poesia, como disse Mallarmé, quer limpar o mundo lotado de palavras para criar silêncio ao redor das coisas. O trabalho hoje quer criar muitas coisas e lotar o redor delas de palavras. Poesia é a linguagem pela qual expressamos nossa eterna surpresa com a beleza ou com o horror da vida. Trabalho é a linguagem pela qual 90% dos nossos contemporâneos esquecem-se dessa eterna surpresa.
A labuta diária é anestésica. Para o mal ou para o bem. Mas uma verdade ainda mais inconveniente que aquela do Al Gore é o fato de que, para a maioria das pessoas, trabalho ainda seja sinônimo de insatisfação. E, pior, a falta de trabalho também. Talvez a mais insana das utopias, o mais nefelibata dos devaneios, seja a idéia de que a humanidade possa um dia sair dessa sinuca de bico que envolve sua relação com o ato de trabalhar. Quando é que as propostas de emprego terão como cerne, tanto do lado do empregador quanto do empregado, a idéia de “vocação”, palavra que aliás tem como origem o latim vo catio, que justamente significa “proposta”, “chamado”, “convite”?
TRABALHA-SE PARA QUÊ?
Robert Frost, um dos grandes nomes da poesia americana do século 20, diz que poeta é uma condição, não uma profissão. É demais esperar que um dia cada profissão humana esteja subjugada à condição mais essencial de cada ser humano? Não sei. Exercer uma profissão harmônica com os desejos vocacionais mais íntimos parece um sonho bem distante da maioria das pessoas. É demais então esperar que um dia essa forma imanente de injustiça social seja corrigida? Também não sei. Mas não me parece que estamos no caminho errado, apesar da histeria produtiva deste início de milênio. Se hoje “trabalho” é sinônimo de “insatisfação”, há não muito tempo “trabalho” era sinônimo de “escravidão”.
Andamos bem. Para andar mais, é preciso primeiro colocar a pergunta: “Trabalha-se para quê?”. Não há uma resposta única. Se em Pirituba trabalha-se mais pela sobrevivência, na Suécia trabalha-se mais pela inserção social, já que a sobrevivência está garantida. Em qualquer lugar, se uns trabalham por dinheiro, outros trabalham pela reputação, pelo poder ou por tudo isso junto. Talvez uma palavra que resuma os desejos e necessidades envolvidos no ato de trabalhar seja “prestígio”. Queremos o reconhecimento da sociedade que nos cerca, seja na forma de um depósito na conta, seja na forma de um afago no ego. “Prestígio.” É uma palavra que tem origem no latim praestigium, assim como a palavra “prestidigitador”. Significa “ilusão”. Ilusão?
É possível que, um dia, toda decisão de trabalho seja baseada menos na idéia daquilo que o mundo quer de cada um de nós e mais na idéia daquilo que de mais íntimo cada um de nós pode dar ao mundo. Nossa vocação. Nesse dia, a vida se tornará mais real. Como a poesia.
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